Planeamento ecológico e ordenamento territorial: o caso do “Plan for the Valleys”

Como conciliar o crescimento urbano com a proteção da paisagem?
E será possível planear o território de forma a respeitar os ritmos da natureza e as suas limitações ecológicas?

Na edição deste mês da rubrica Entre o Clima e a Paisagem, revisitamos um marco do planeamento ambiental: o The Plan for the Valleys (1964), elaborado pelos arquitetos paisagistas Ian McHarg e David Wallace para o condado de Baltimore, nos Estados Unidos da América(Figura 1). Este plano é amplamente reconhecido  como uma das primeiras experiências práticas de planeamento ecológico à escala regional. Ao integrar a análise ecológica com as dinâmicas sociais e económicas, o plano procurou orientar o crescimento urbano sem comprometer os valores naturais e culturais da paisagem, propondo um equilíbrio inovador entre a intervenção humana e os sistemas ecológicos.

 

Figura 1. Zonas de conservação e limites de planeamento no condado de Baltimore. Esquema ilustrativo da divisão ecológica e funcional proposta no Plan for the Valleys (1964), com base na análise fisiográfica do território.
O mapa mostra a localização das principais áreas de planeamento rural (RC 1 a RC 5) — zonas definidas segundo a sua adequação natural ao desenvolvimento, incluindo planícies de cheia, solos agrícolas, zonas de planeamento diferido, bacias hidrográficas e áreas residenciais rurais.

Destacam-se ainda:

  • URDL (Urban–Rural Demarcation Line) – linha de demarcação urbano-rural que limitou a expansão da cidade;
  • RLA (Rural Legacy Areas) – áreas prioritárias de conservação;
  • PFA (Priority Funding Areas) – zonas urbanas preferenciais para investimento público.

O diagrama sintetiza a estratégia de McHarg e Wallace: ordenar o crescimento urbano a partir da lógica ecológica da paisagem, promovendo um modelo de ordenamento territorial baseado nos limites e potencialidades naturais do solo.

Fonte: Adaptado de Hundt & Daniels (2023), Assessing the Vision of Ian McHarg and David Wallace: The Plan for the Valleys, Landscape Journal.

 

Um território sob pressão

Nos anos 1960, a paisagem rural de Baltimore County enfrentava uma ameaça crescente: a expansão suburbana impulsionada pelo pós-guerra e pelas novas autoestradas. A construção da I-695 e da I-83 acelerava o avanço da cidade sobre os vales agrícolas e florestais — Worthington, Green Spring e Caves Valley — zonas de grande valor ecológico e paisagístico.

Perante o risco de perda deste património, os proprietários rurais criaram o Valleys Planning Council (VPC) e convidaram Ian McHarg e David Wallace a elaborar um plano que conciliasse desenvolvimento urbano com aconservação ambiental. O resultado foi um documento pioneiro, que utilizava métodos científicos de análise ecológica para determinar onde se podia construir e onde se devia preservar.

 

 

Ecologia da Paisagem como base do planeamento

O Plan for the Valleys partia de uma ideia simples, mas revolucionária para a época: a natureza deve orientar o planeamento humano.
Ian McHarg, um dos fundadores da ecologia aplicada ao urbanismo, defendia que cada paisagem tem a sua lógica interna, determinada por fatores como o relevo, o solo, a água e o clima.

Para compreender essa lógica, a equipa criou um conjunto de mapas sobrepostos (overlays) (Figura 2), que avaliavam as condições ecológicas do território, incluindo:

  • zonas de cheia, declives acentuados e áreas de recarga de aquíferos;
  • solos agrícolas férteis;
  • florestas e corredores ecológicos;
  • áreas urbanas existentes e infraestruturas.

Figura 2.Objetivos e Mapa de Uso Ótimo do Solo do “Plan for the Valleys” (1964).
Fonte: Ian McHarg & David Wallace, The Plan for the Valleys (1964), adaptado por Hundt & Daniels (2023).

 

Com base nesta análise, as áreas mais sensíveis foram classificadas como zonas de conservação, enquanto as mais estáveis foram classificadas como adequadas à construção. Este método, hoje comum no ordenamento ecológico, representou uma inovação absoluta na década de 1960.

 

 

Soluções inspiradas na paisagem

O plano propunha um modelo de crescimento controlado, em que as novas povoações seriam concentradas nos planaltos e cristas, deixando os vales férteis livres de construção. Esta distribuição não era apenas uma opção estética — era uma resposta direta às condições naturais do território.

Entre as medidas inovadoras (Figura 3), destacavam-se:

  • Delimitação de uma fronteira urbano-rural (URDL) para conter a expansão das infraestruturas urbanas;
  • Criação de zonas de conservação de recursos (RC Zoning), restringindo a densidade de construção em áreas agrícolas e florestais;
  • Introdução do sistema de Transferência de Direitos de Construção (TDR), que permitia aos proprietários receber compensações por manterem as suas terras preservadas;
  • Promoção de aldeias compactas e sustentáveis, integradas na paisagem, em vez de urbanização dispersa.

Estas ideias procuravam provar que o desenvolvimento económico e a proteção ambiental podem coexistir, desde que o planeamento territorial se baseie na ecologia e não na especulação.

 

Figura 3. Estratégias de planeamento urbano

 

 

Impactos e legado duradouro

Embora nem todas as propostas urbanísticas de Ian McHarg e David Wallace tenham sido concretizadas, o plano teve efeitos duradouros.
O URDL, criado em 1967, continua a ser um dos instrumentos de planeamento mais eficazes dos Estados Unidos.
A RC Zoning (1976) protege hoje mais de 135 mil acres de terrenos agrícolas, e o programa de servidões ecológicas (1979) assegurou a preservação de cerca de 60 mil acres adicionais.

Graças a estas políticas, as paisagens rurais do norte de Baltimore permanecem praticamente intactas até hoje, tornando-se um modelo de sucesso em gestão territorial e planeamento ecológico.
Mais do que um plano técnico, The Plan for the Valleys representou uma mudança de paradigma: o reconhecimento de que a paisagem é o primeiro e o mais importante planeador.

Forças e limitações

O principal mérito de Ian McHarg e David Wallace foi introduzir a ciência ecológica no planeamento territorial, décadas antes de a sociedade reconhecer plenamente a urgência ambiental.

Os autores criaram ferramentas práticas — como as linhas de crescimento urbano e o zonamento ecológico — que continuam a inspirar políticas de sustentabilidade em todo o mundo.

Contudo, o plano também teve limitações importantes:

  • A sua implementação social foi restrita, centrando-se sobretudo em grandes proprietários rurais;
  • O sistema de compensações (TDR) revelou-se complexo e pouco acessível;
  • E a valorização do solo protegido acabou por aumentar o custo da habitação, reduzindo a inclusão social.

Apesar disso, o seu impacto académico e político foi profundo.

Ian McHarg transformou a experiência em base para o seu livro “Design with Nature” (1969), que moldou o pensamento de gerações de planeadores e arquitetos paisagistas em todo o mundo.

 

 

Porquê revisitar este plano?

Da experiência de Baltimore, retiram-se aprendizagens essenciais:

  1. Planear a partir da natureza — o solo, a água e a topografia devem ser o ponto de partida de qualquer projeto.
  2. Definir fronteiras claras — limitar a expansão urbana é essencial para proteger recursos agrícolas e ecológicos.
  3. Valorizar os serviços ecológicos da paisagem — os vales regulam o clima, filtram a água e previnem cheias.
  4. Envolver as comunidades locais — o planeamento só é sustentável quando integra quem vive e trabalha no território.
  5. Pensar a longo prazo — a resiliência territorial exige políticas estáveis e visão intergeracional.

 

Planeamento ecológico e resiliência climática

A abordagem de McHarg e Wallace antecipou princípios que hoje são fundamentais para a adaptação às alterações climáticas, (Figura 4).
Ao considerar fatores como relevo, drenagem, solos e vegetação na definição de zonas de construção, o plano reduziu riscos de cheias, erosão e impermeabilização — problemas que se intensificam em contextos de eventos climáticos extremos.

O conceito de “crescimento urbano contido” (através da URDL) revelou-se uma ferramenta de mitigação indireta das emissões de carbono, ao promover densidade urbana equilibrada, menor consumo energético e proteção de áreas verdes periféricas.
Assim, The Plan for the Valleys pode ser lido hoje como um modelo de planeamento climático antecipado, onde a ecologia serve de base para a resiliência territorial.

 

Figura 4. Planeamento ecológico para a resiliência climática

 

 

Governança e participação: a dimensão social do planeamento

Um dos aspetos mais interessantes — e também mais desafiantes — do plano foi o papel das comunidades locais.
A criação do Valleys Planning Council demonstrou que a conservação pode nascer da iniciativa cívica, quando proprietários, técnicos e instituições públicas encontram um interesse comum: preservar a qualidade de vida e o valor paisagístico do território.

Contudo, o caso também evidencia a necessidade de alargar a participação a todos os grupos sociais, evitando que o planeamento ecológico se restrinja às elites fundiárias.
A experiência norte-americana mostra que a governança colaborativa — envolvendo cidadãos, técnicos e decisores — é condição essencial para políticas duradouras de ordenamento e conservação.

 

 

Conclusão: planear com a natureza, não contra ela

The Plan for the Valleys continua a ser uma das referências mais inspiradoras do planeamento ecológico. Mostra-nos que o equilíbrio entre o ser humano e o território depende de ouvir a paisagem e compreender as suas regras antes de agir.

Num tempo em que as alterações climáticas e a urbanização desordenada ameaçam os ecossistemas, o legado de McHarg e Wallace recorda-nos que planear é também um ato de respeito — uma forma de proteger a terra que nos sustenta, e de garantir que o futuro se desenha entre o clima e a paisagem.

 

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