Como construir comunidades mais resilientes num contexto de transição energética?
De que forma é que a participação cidadã pode transformar a produção e o consumo de energia?
Neste mês, na rubrica Entre o Clima e a Paisagem, damos destaque a um exemplo europeu que une energia, cidadania e inovação social. O projeto ACCEPT – Living Labs para Comunidades de Energia propôs-se responder a uma pergunta central: como é que as comunidades podem tornar-se protagonistas da transição energética?
Entre 2021 e 2025, o projeto desenvolveu experiências piloto em quatro países europeus (Grécia, Espanha, Suíça e Países Baixos), envolvendo cidadãos, cooperativas de energia, investigadores, técnicos e autoridades locais. O seu objetivo: criar comunidades de energia mais justas, resilientes e participativas, recorrendo a metodologias de aprendizagem colaborativa.
Do conceito à prática: o que é uma comunidade de energia?
As comunidades de energia são estruturas coletivas onde cidadãos, empresas locais e entidades públicas se organizam para produzir, consumir e gerir energia — geralmente de fontes renováveis — com base na proximidade, na participação democrática e na partilha de benefícios.
Mas a investigação do projeto ACCEPT mostrou que o sucesso destas comunidades depende de mais do que infraestruturas técnicas ou modelos de negócio. Depende de um fator essencial: o sentido de comunidade.
“Togetherness” — ou coesão — foi identificado como o alicerce emocional e funcional mais importante para formar uma comunidade energética resiliente.

Os Laboratórios Vivos: testar em contexto real
Ao longo de quatro anos, o projeto estruturou Living Labs, ou seja, laboratórios vivos de experimentação, em contextos reais e com pessoas reais. Em cada local, comunidades locais foram envolvidas na co-criação de soluções de energia adaptadas aos seus contextos, valores e necessidades.
As ações desenvolvidas incluíram:
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Cocriação de aplicações digitais para monitorização de consumos
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Desenvolvimento de ferramentas de gestão comunitária da energia
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Envolvimento de cidadãos em decisões sobre tecnologias e modelos de governação
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Identificação de barreiras legais, sociais e económicas à criação de comunidades energéticas
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Promoção de workshops, fóruns e encontros participativos entre os vários atores
Esta abordagem permitiu uma aprendizagem partilhada entre técnicos, académicos e cidadãos, valorizando o conhecimento local e promovendo relações de confiança — um aspeto identificado como determinante.

Um quadro para entender “comunidade”
Na fase inicial do projeto, os participantes foram convidados a partilhar o que lhes vinha à mente quando ouviam a palavra “comunidade”. A análise dessas respostas revelou um quadro conceptual com um tema central — a coesão (“togetherness”) — sustentado por três fatores: valores, necessidades e contexto.
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Valores: identidade, solidariedade, pertença
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Necessidades: segurança, equidade, acesso à informação
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Contexto: o lugar físico e social onde a comunidade se insere
Esta definição expandida de “comunidade” vai muito além de critérios geográficos. Aponta para a construção de uma rede de relações afetivas e funcionais, assente na colaboração e no objetivo comum.
Desafios reais para comunidades reais
Ao longo do projeto, foram identificadas várias barreiras concretas à criação e sustentabilidade das comunidades energéticas. Entre as mais destacadas estão:
1-Falta de democracia social e de confiança
A desconfiança entre cidadãos e instituições ou entre os próprios membros da comunidade pode comprometer a participação. Situações como falta de transparência, desigualdade na partilha de benefícios ou decisões tomadas de forma unilateral foram apontadas como fatores de desmotivação.
2-Barreiras regulatórias
Os diferentes quadros legais e a complexidade da legislação nacional e europeia dificultam a criação e operação de comunidades energéticas. Muitas vezes, as regras não acompanham a realidade das iniciativas locais.
3-Fragilidade das redes locais
A ausência de atores mobilizadores — como líderes comunitários, autarquias ou associações — torna mais difícil estruturar uma comunidade de energia. É necessário tempo, recursos e capacidade de articulação.
4-Resistência à mudança
Mesmo em contextos com potencial, existe por vezes resistência cultural ou emocional à transformação. A mudança exige tempo, segurança e apoio.
5-Incerteza quanto aos benefícios
Muitos cidadãos sentem dúvidas sobre os reais benefícios económicos, ambientais ou sociais da sua participação. Falta informação clara, adaptada ao contexto local.
Estratégias para construir resiliência comunitária
Com base nas aprendizagens dos laboratórios vivos, foram identificadas várias estratégias eficazes para fomentar comunidades energéticas resilientes:
Aposta em estratégias sociais
A investigação mostrou que as estratégias mais eficazes não são tecnológicas nem financeiras: são sociais. O envolvimento, a escuta ativa, a criação de espaços de diálogo e a partilha de decisões foram apontados como cruciais.
Transparência e confiança
Partilhar informação clara sobre riscos, benefícios e processos — de forma acessível — é essencial para gerar confiança e envolvimento.
Modelos de negócio orientados para a comunidade
Os modelos económicos mais eficazes foram os que priorizam o valor social e não apenas o lucro. Um modelo de negócio que respeita os valores da comunidade tem mais aceitação e sucesso.
Compreender o território
Cada comunidade é única. As soluções devem ser construídas com base no conhecimento do território, das pessoas e das suas histórias.
Envolver desde o início
A inclusão de cidadãos desde o início do processo — e não apenas na fase de implementação — aumenta o sentido de pertença e a motivação para participar.
E quando a tecnologia entra em cena?
Embora a tecnologia não seja o fator prioritário, tem um papel relevante. A criação de aplicações intuitivas, ferramentas digitais de gestão comunitária e plataformas de monitorização energética foram pontos importantes para facilitar o envolvimento.
No entanto, a tecnologia deve estar ao serviço da comunidade — e não o contrário.

Conclusão: energia que se constrói em conjunto
O projeto ACCEPT demonstrou que a transição energética só será justa, duradoura e eficaz se for feita com — e para — as comunidades. A energia, mais do que um bem técnico ou económico, é também uma forma de criar relações, fortalecer o tecido social e promover a democracia local.
Ao dar voz às pessoas, ao valorizar os seus saberes e ao respeitar os seus ritmos, abrimos caminho para soluções energéticas que não só reduzem emissões, como criam pertença, segurança e bem-estar.
Esta é uma das formas mais poderosas de cuidar do território: através da energia, da participação e do compromisso com um futuro mais justo para todos.
Entre o Clima e a Paisagem é uma rubrica do Centro do Clima que partilha exemplos inspiradores e conhecimento científico aplicado aos territórios, promovendo práticas onde sustentabilidade, cultura e participação comunitária andam de mãos dadas.

