Entre o Clima e Paisagem
Uma rubrica que traduz e partilha ciência sobre a nossa área de atuação
O restauro florestal tem-se consolidado como uma das estratégias mais relevantes para enfrentar simultaneamente duas crises globais: a emergência climática e a perda acelerada de biodiversidade. No entanto, apesar do crescente investimento e da multiplicação de compromissos internacionais, a biodiversidade continua a ser, na maioria dos casos, um resultado implícito e não uma meta explícita dos projetos de restauro.
O artigo “Moving biodiversity from an afterthought to a key outcome of forest restoration”, publicado na revista Nature Reviews Biodiversity (Brancalion et al., 2025), propõe uma reorientação clara: colocar a biodiversidade como objetivo central e mensurável do restauro florestal, reconhecendo o seu papel estruturante na resiliência ecológica e no equilíbrio climático das paisagens. Neste artigo, partilhamos alguns dos principais ponto-chave e conclusões para divulgar o conhecimento científico de uma forma clara e acessível.
A biodiversidade como elemento estruturante da paisagem e do clima
As florestas não são meras somas de árvores. São ecossistemas complexos, compostos por milhares de interações entre plantas, animais, microrganismos e fatores abióticos. A biodiversidade — entendida aqui em todas as suas dimensões: taxonómica (diversidade de espécies), funcional (variedade de papéis ecológicos desempenhados pelos organismos), filogenética (diversidade evolutiva entre espécies) e genética (variação genética dentro das espécies) — é o motor que sustenta o funcionamento ecológico e a estabilidade a longo prazo das paisagens restauradas.
Uma floresta biodiversa:
- Tem maior capacidade de adaptação às alterações climáticas;
- Melhora a qualidade do solo e da água;
- Favorece o controlo biológico de pragas e a polinização;
- E proporciona serviços de ecossistema mais duradouros e resilientes.
Assim, restaurar a biodiversidade é também restaurar o clima local, a produtividade agrícola e a qualidade de vida humana — especialmente nas comunidades mais dependentes dos recursos naturais.
Abordagens de restauro florestal: do mínimo ao máximo de intervenção
Nem todas as áreas degradadas precisam da mesma abordagem para recuperar a biodiversidade e a funcionalidade ecológica. O tipo de intervenção depende de fatores como o histórico de uso do solo, a presença de bancos de sementes, a proximidade de remanescentes naturais e a presença de espécies exóticas invasoras.
A imagem abaixo, adaptada do artigo, ilustra quatro estratégias principais de restauro, organizadas de acordo com o grau de intervenção humana necessário para desbloquear ou acelerar a sucessão ecológica:
- Regeneração natural
Quando as condições do solo, clima e proximidade de áreas florestadas são favoráveis, pode-se permitir que a natureza siga o seu curso, resultando em recuperação espontânea da vegetação nativa. É a opção de menor custo, mas requer tempo e condições adequadas. - Regeneração natural assistida
Inclui ações como o controlo de espécies exóticas invasoras, proteção contra fogo ou pastoreio e remoção de obstáculos físicos. Aqui, a regeneração ocorre naturalmente, mas com apoio humano para facilitar o processo. - Replantação com padrões espaciais
Envolve a plantação de espécies nativas em mosaico, ilhas ou corredores, que atuam como núcleos de regeneração. Esta técnica promove um restauro mais acelerado, ao mesmo tempo que permite a colonização natural do espaço envolvente. - Plantação para restauro
Utilizada em áreas fortemente degradadas, onde já não existe potencial de regeneração espontânea. Envolve plantação intensiva de múltiplas espécies nativas, normalmente acompanhada de controlo rigoroso de invasoras e elevada manutenção. É a abordagem mais cara e com maior dependência de gestão contínua.
Esta gradação ajuda os gestores de paisagem a escolherem a abordagem mais adequada ao contexto ecológico e socioeconómico, equilibrando custo, complexidade e benefícios a longo prazo.
Adaptado e traduzido de Brancalion et al., (2025)
Limitações das práticas atuais de reflorestação
Apesar da retórica favorável à biodiversidade, grande parte das iniciativas de restauro florestal continua a adotar modelos simplificados — como plantações monoespecíficas ou de espécies exóticas — orientados para a produção de carbono ou madeira. Estes modelos, embora úteis para certos fins, oferecem benefícios ecológicos limitados e, em muitos casos, podem até comprometer a biodiversidade local.
Entre os principais desafios identificados pelos autores estão:
- A falta de metas claras de biodiversidade nos projetos;
- A ausência de métodos de monitorização adequados e de longo prazo;
- A priorização de indicadores como número de árvores plantadas, em detrimento da composição florística, diversidade funcional ou retorno da fauna nativa;
- E a desvalorização da dimensão social do restauro florestal.
Recomendações estratégicas para restaurar com biodiversidade
O artigo propõe um conjunto de recomendações para assegurar que os ganhos de biodiversidade não sejam apenas desejáveis, mas concretamente alcançados e mensurados:
- Definir metas de biodiversidade específicas e contextualizadas, alinhadas com os objetivos do projeto, o tipo de ecossistema e as necessidades das comunidades envolvidas;
- Escolher métodos de restauro adequados ao contexto local, combinando regeneração natural, plantação de espécies nativas e intervenções adaptativas;
- Priorizar áreas com elevado potencial de recuperação ecológica e onde o restauro possa reforçar a conectividade ecológica e complementar áreas de conservação;
- Implementar sistemas de monitorização robustos, com indicadores multiescalares e multiespécie, que acompanhem a evolução da biodiversidade ao longo do tempo;
- Integrar o conhecimento local e científico, promovendo parcerias com comunidades, centros de investigação, viveiros florestais e organizações da sociedade civil;
- Mobilizar financiamento sustentável e diversificado, incluindo mecanismos como créditos de biodiversidade, pagamentos por serviços de ecossistema e parcerias público-privadas.
Biodiversidade como elo entre clima e paisagem
A chave para um restauro florestal eficaz está em reconhecer que a biodiversidade não é um fim isolado, mas um elo central entre o funcionamento e a valorização da paisagem e a estabilidade climática. Projetos que restauram ecossistemas diversos contribuem de forma mais significativa para a mitigação das alterações climáticas, a recuperação dos solos e a resiliência das comunidades humanas.
A paisagem restaurada com biodiversidade não só recupera a sua capacidade ecológica, como adquire valor social, económico e cultural. A floresta deixa de ser apenas um sumidouro de carbono e passa a ser um espaço habitado, funcional e vivo, ao serviço da natureza e das pessoas.
Conclusão: da ambição à ação
O desafio é claro: se queremos florestas que durem e que contribuam efetivamente para a crise climática e ecológica, a biodiversidade tem de estar no centro da equação — desde a conceção até à monitorização.
Esta abordagem requer planeamento a longo prazo, políticas públicas coerentes, financiamento alinhado com metas ambientais e uma verdadeira integração entre ciência, gestão e comunidades locais.
Em vez de tratar a biodiversidade como um efeito colateral, é tempo de a reconhecer como fundamento da resiliência das paisagens restauradas e garantia de um futuro sustentável para todos os seres vivos.
O projeto Bosques pelo Clima
O projeto Bosques pelo Clima, promovido pelo Centro do Clima da Póvoa de Varzim, é um exemplo claro de como a seleção criteriosa de espécies adaptadas às condições edafoclimáticas locais pode potenciar os resultados ecológicos e económicos da restauração florestal. Ao apostar em espécies nativas e resilientes — que exigem menos recursos e manutenção — este projeto contribui para a recuperação funcional dos ecossistemas, promove a biodiversidade e reforça os serviços de ecossistema essenciais, como a regulação hídrica, a melhoria do solo e a captura de carbono. Esta abordagem técnica, baseada no conhecimento científico e no respeito pelos ritmos da natureza, serve de inspiração para agricultores, hortelãos e gestores de espaços verdes que queiram construir sistemas mais sustentáveis e preparados para as alterações climáticas.